Ok. Como portadora de Transtorno de Personalidade Borderliner acaba aqui
minha curiosidade. Peço aos seguidores do meu Blog que não assistam 13
REASONS WHY, POR FAVOR. Lutamos diariamente pra permanecer razoavelmente
sãos. NÃO PRECISAMOS DE MAIS GATILHOS.
Em 23
anos de carreira, nunca recomendei seriamente aos leitores que
deixassem de assistir a algo. Por mais que eu deteste uma obra, não acho
que seja uma função do crítico dizer o que o leitor deve ou não ver -
e, além disso, acredito que aprendemos sobre linguagem mesmo com os
filmes ruins (nem que seja pelo contra-exemplo).
No entanto,
chegou a hora de abrir uma exceção e é isto que farei agora. Não porque a
produção em questão seja narrativamente medíocre (embora ela seja, como
aponto na crítica), mas porque é simplesmente perigosa.
Estou falando de Os 13 Porquês, projeto da
Netflix.
Não repetirei aqui tudo o que falei em meu texto sobre a série e no
qual explico porque a considero perigosa e acredito que, mesmo com boas
intenções, tem um potencial imenso de desequilibrar aqueles que estão
lutando para manter o próprio balanço. (Se tiver interesse em ler, a
crítica está em
http://cinemaemcena.com.br/critica/…/8367/os-13-porqu%C3%AAs).
Numa campanha de marketing inteligente (e, de novo, que pode até ser
bem intencionada), a Netflix fez uma parceria de divulgação com o
CVV-Centro de Valorização da Vida,
cuja importância já discuti neste espaço várias vezes. No entanto, acho
extremamente cínica a postura da plataforma de usar o aumento das
ligações ao CVV como "comprovação" de que Os 13 Porquês exerce um efeito
inquestionavelmente positivo.
Em primeiro lugar, é ÓBVIO que as
ligações aumentariam: este é o efeito esperado de QUALQUER campanha de
divulgação. Em segundo lugar, as ligações comprovam também algo que
venho afirmando desde o princípio: que Os 13 Porquês tem um imenso
potencial para disparar gatilhos.
Irresponsável em sua abordagem
(de novo: discuto na crítica) e ao encenar com detalhes o suicídio de
Hannah, a série vai de encontro a várias das recomendações feitas pela
própria OMS quanto à forma com que o suicídio deve ser tratado pela
mídia.
E, infelizmente, os efeitos negativos do projeto já podem
ser inferidos na prática. Em minha timeline no Twitter, por exemplo,
diversos psicólogos registraram uma preocupação com a reação de
pacientes à série (é só conferir minhas mentions em @pablovillaca), o
mesmo se aplicando a professores do ensino médio. Ainda mais trágica foi
a notícia do suicídio de uma jovem cujo último post no Facebook
informava justamente estar assistindo a 13 Porquês. (Obviamente, não vou
mencionar seu nome ou as circunstâncias específicas, mas confirmei a
informação depois de alertado por um leitor amigo da família.) É claro
que apenas o fato de estar assistindo à série antes de se matar não é
algo que estabeleça relação causal, mas é sugestivo - especialmente se
considerarmos a força já estabelecida do Efeito Werther (se alguém
quiser saber mais sobre a origem do termo, sugiro este artigo
https://t.co/WACwOenqLU).
E é por isso que abro a exceção mencionada no início deste artigo e,
como alguém que já escreve há anos sobre depressão neste e em outros
espaços, sugiro enfaticamente aos leitores que lidam com a doença que
NÃO assistam a Os 13 Porquês.
Se você viu a produção e extraiu
dela boas lições, ótimo; mas seja responsável e alerte as pessoas que
lidam com a depressão crônica para o fato de que ela dispara muitos
gatilhos.
A ideação suicida já é, por si só, suficientemente
nociva; reforçá-la com narrativas maniqueístas e irresponsáveis é algo
não só desaconselhável, mas também perigoso.
Fiquem bem, mantenham os pés no chão e lembrem-se: a ajuda está a um clique ou a um número de telefone de distância:
www.cvv.org.br ou 141.
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ATUALIZAÇÃO (EM 09/04/2017, ÀS 15H48):
As centenas de depoimentos presentes nos comentários abaixo comprovam
que a preocupação com os efeitos da série sobre quem sofre de depressão
encontra respaldo na prática. Negar isso seria negar a coragem de todos
aqueles que se expuseram nos comentários enquanto relatavam suas
histórias e suas próprias experiências com a série.
No entanto,
há quem ainda assim prefira se concentrar na academia e em estudos sobre
o tema; acho compreensível, pois também tenho um fraco pela Ciência.
;)
Assim, para contemplar estes últimos, decidi incluir as referências
abaixo. Se você não tem interesse pelos estudos (analíticos ou
descritivos) sobre o tema, apenas ignore o restante deste post, que
trará referências acadêmicas específicas:
Um dos artigos mais
citados em estudos do tipo, por exemplo, é "The impact of suicide in
television movies. Evidence of imitation." (GOULD, MS; SHAFFER, D.), que
analisou estatisticamente a incidência de suicídios entre adolescentes
antes e após a exibição na tevê de filmes que traziam personagens se
matando, comprovando, para além da possibilidade de aleatoriedade
estatística, uma relação causal entre ambos.
(Este estudo, por sinal, foi publicado no The New England Journal of Medicine.)
Outro estudo relativo ao efeito Werther é "Clustering of teenage
suicides after television news stories about suicide." (PHILLIPS, DP,
CARSTENSEN, LL), que, embora parta da análise da influência de notícias
sobre suicídios, também aborda o possível impacto entre histórias
envolvendo suicídios e aumento de ideação suicida - e correlações
estatísticas foram encontradas em ambos os casos.
É possível,
porém, argumentar que os estudos anteriores datam da década de 80 e que,
portanto, podem não refletir o mundo contemporâneo. Ok, seria um
argumento válido.
Assim, recomendo o estudo "Exposure to Suicide
Movies and Suicide Attempts." (STACK, Steven; KRAL, Michael; BOROWSKI,
Teresa), publicado em 2014. Neste estudo, os autores avaliaram não só a
exposição de adolescentes a filmes que retratavam o estudo, mas tiveram o
cuidado de incluir controles importantíssimos como religião, histórico
de depressão e outros aspectos demográficos.
O achado deste
estudo? "Uma análise de regressão logística multivariada determinou que,
já incluindo outros fatores de controle, para cada EXPOSIÇÃO ADICIONAL A
UM FILME (QUE RETRATA O SUICÍDIO) O RISCO DE TENTATIVA DE SUICÍDIO
AUMENTAVA EM 47,6%". Agora o elemento mais importante do estudo: a
variável recorrente empregada no estudo foi "tentativa anterior de
suicídio".
Em outras palavras: EXATAMENTE o grupo que alertei para o risco de assistir à série.
Para finalizar, recomendo também o estudo "Suicide and the
entertainment media" (PIRKIS, Jane; BLOOD, Warwick). O que este estudo
em particular tem de curioso é o fato de que se concentrou na tarefa de
quantificar e avaliar os achados de dezenas de outros estudos sobre o
tema para definir se havia alguma consistência entre eles. (Este estudo
é de 2010; portanto, não considera o que citei logo acima, que veio
quatro anos depois.)
Para isso, eles consultaram TODOS os estudos
publicados nas seguintes bases desde o momento de sua criação até a
data da análise (2010): MEDLINE, PSYCHLIT, COMMUNICATION ABSTRACTS,
ERIC, DISSERTATION ABSTRACTS e APAIS. Eles avaliaram também, além da
influência de filmes, a de séries para a TV, de músicas e de peças de
teatro. Eles levaram em consideração as metodologias de CADA estudo, sua
natureza (descritiva ou analítica), e conferiram pesos a pontos como
consistência, temporalidade, especificidade e coerência. Ao todo,
avaliaram quase 50 estudos: 27 sobre filmes e séries; 19 sobre música e o
único encontrado sobre teatro. A conclusão: "Estudos adicionais são
necessários, mas "há evidências da associação entre a representação de
suicídio na MÍDIA DE ENTRETENIMENTO e comportamento suicida real".
Agora, MESMO depois de todas estas evidências, é claro que alguém pode
dizer "Mas não há uma comprovação definitiva, 'apenas' a (forte)
indicação da existência de uma correlação!".
E minha resposta
seria: isto já é o suficiente para adotar a atitude de alertar aqueles
que sofrem de depressão para o perigo em potencial de 13 Porquês. A vida
é preciosa demais para esperar comprovações "definitivas".
Abraços,
Pablo
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ATUALIZAÇÃO 2 (em 09/04, às 21h25):
Quero recomendar dois textos adicionais: um do site The Mighty (
https://themighty.com/…/thirteen-reasons-why-jay-asher-sui…/) e outro escrito pelo psiquiatra brasileiro
Luís Fernando Tófoli:
https://www.facebook.com/lftofoli/photos/a.337423276451452.1073741828.159217847605330/647490008778109/?type=3&theater